Por Plínio Rocha

No Twitter: @pliniorocha77

Ninguém sabe pelo que Felipe França passou depois do fracasso na Olimpíada de Londres, em 2012. Ninguém mesmo. Ninguém estava dentro da cabeça dele para entender o que invadiu os pensamentos depois que toda aquela expectativa nos 100m peito foi por água abaixo na Inglaterra. Era muita pressão, muita gente apostando e cobrando, por mais que nada seja mais duro do que a carga que o próprio sujeito coloca nele mesmo.

Mas ninguém sabe o quanto o cidadão comeu o pão que o diabo amassou. Só ele.

Felipe é dos caras que sentem um baque desse. Mostrou isso. Caiu de rendimento imediatamente depois, engordou 20 quilos, nas palavras do próprio. Mas, num determinado momento, teve de levantar a cabeça, paciência, a vida continua, e se ela já é dura para quem luta e vence, imagine para quem não consegue alcançar os objetivos, seja ele quem for, famoso ou não, atleta ou não, um cara normal como eu, você e qualquer um.

França viveu seu período de luto, todo mundo vive quando isso acontece, mas acabou levantando a cabeça. Aos poucos, cheio de desconfiança e vagarosamente, mas levantou. Depois de uma Olimpíada vem um Mundial de longa, um de curta, um Pan, outra Olimpíada. Não há mal que nunca acabe, dizem, e por mais que a maioria dos ditados populares seja meio besta, esse aí até que tem um quê de coerência. Dá para pensar assim para seguir em frente, é o único caminho, aliás.

E foi no começo de 2014 que Felipe colocou a pedra fundamental do castelo que começou a construir para que se tornasse uma fortaleza que o daria a tranquilidade necessária para a reconstrução pessoal, física e, mais importante, mental. Assinou com o Corinthians, e poderia até ser outro clube, mas foi lá que ele encontrou o que mais precisava.

O Corinthians, claro, investe na natação. Tem uma excelente estrutura, uma equipe competitiva que voltou a colher os frutos que sua tradição cobra, profissionais mais do que gabaritados para o crescimento dos atletas. Mas, principalmente, França se transformou em um exemplo para todo mundo ali. A molecada, a base desse time renovado e já vencedor, olhava para aquele cara e apertava os óculos com mais afinco. Putaquepariu, é um recordista mundial, campeão consagrado que vai treinar do lado de todo mundo, todo dia. Não é todo dia que isso acontece, e é um fenômeno parecido com o que cerca gente como Cesar Cielo, Thiago Pereira, Nicholas dos Santos, Etiene Medeiros, Fabíola Molina, Flavia Delaroli e mais uma porrada, porque tem gente boa demais por aí, mesmo sem recordes ou títulos mundiais no currículo.

Para a gente do Corinthians, então, era um incentivo a mais ter aquele exemplo ao lado. Mas isso tinha, de alguma maneira, de tocar Felipe. Tinha de entrar no coração do cara de uma maneira que ele percebesse que aquilo se tratava, sim, de uma responsabilidade a mais. E é isso que o Corinthians espera quando investe uma grana num cara assim, que ele faça com que a equipe cresça, no geral, porque a parte dele, individual, eventualmente virá, com medalhas de ouro, recordes e pontos nos torneios nacionais, tão importantes para manter a saúde dos clubes em dia.

França, ao assumir esse posto, ao permitir que a obrigação de ser, sim, um exemplo para todos, foi exorcizando os demônios aos poucos. Os quilos a mais foram sendo eliminados com a mesma velocidade com a qual a confiança foi sendo resgatada. O peitista pode nem ter percebido, mas a mudança já estava feita. A paz voltou, e, desta vez, nem precisa estar dentro da cabeça dele para perceber isso. Ninguém nunca esteve nem estará, não importa o quão próximo seja dele, mas algumas coisas são perceptíveis demais. E o cara se entrega, eventualmente, porque felicidade se exala, muitas vezes diferentemente do que acontece quando se está triste e derrotado.

Por isso, quando caiu na piscina em Doha, Felipe estava colocando em prática o estágio final de um processo longo. Vencer, conquistar o ouro, os cinco, claro, era importante. Era o último tijolo daquele castelo que começou a ser construído lá atrás, em um terreno extremamente arrasado, e que se transformou na tal fortaleza que ele precisava para encarar de peito aberto, literalmente, as batalhas que virão pela frente, cada uma igualmente importante, não importa se na piscina curta ou longa, no Brasil ou fora dele, porque vai ser sempre uma provação, sempre aquela cobrança implacável quando o resultado não aparece.

As vitórias no Mundial foram vistas por milhares, milhões, mas Felipe França certamente executou uma etapa final desse processo todo, esta mais privada, para poucos expectadores, quando voltou a cair na piscina do Corinthians para treinar, preenchido pelos olhares e pelo sentimento de orgulho que certamente levou para aquela molecada que o ajudou a se reerguer naquele que pode ter sido o momento mais complicado da carreira dele. E, por que não dizer, da vida.

Plínio Rocha é editor do Diário de S.Paulo e escreve a coluna Na Raia no Best Swimming desde 2007

2 respostas
  1. Rodrigo G
    Rodrigo G says:

    Plinio, parabéns! Belo texto e muito coerente. Torço para que o Felipe continue encontrando a mesma tranquilidade e estabilidade para continuar sua trajetória. Sem cobranças, sem deixar que as expectativas criadas tirem seu foco e sua paz.

  2. Fabiano Marcondes
    Fabiano Marcondes says:

    Muito bom o texto! Parabéns! Seria interessante uma entrevista com o próprio. Agregaria bastante. Fica a dica. Abs.

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