A deficiência de Daniel Dias todo mundo conhece, já viu, já comentou. Natural de Campinas, onde nasceu há 33 anos, o animado e sapeca filho de seu Paulo e dona Rosana nasceu diferente. Sem os dois braços, sem uma perna. Para ser mais preciso, o braço direito termina no cotovelo, o esquerdo é ainda menor e só tem um dedo. Ele tem a perna esquerda, mas a direita termina no joelho, e sem pé.
Daniel Dias faz parte dos 46 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil. De acordo com o Censo de 2010, é cerca de 24% da população nacional que tem algum tipo de deficiência, seja ela motora, visual, de audição ou intelectual. Poucos dias antes do início dos Jogos Paralímpicos de Tóquio, uma grande campanha mundial que integrou diversas entidades globais incluindo ONU e Comitê Paralímpico Internacional apontou que temos 1,2 bilhões de pessoas no mundo com deficiência.
Se alguém acha que esta má formação congênita limitou Daniel Dias, você realmente não conhece Daniel Dias. Criado em Camanducaia, interior de Minas Gerais, o baterista da igreja local se inspirou pela Paralimpíada de Atenas para virar nadador. Aos 16 anos de idade, assistiu o seu ídolo de infância Clodoaldo Silva ganhar seis medalhas de ouro e uma prata. A igreja perdia um baterista, e o mundo ganhava o maior nadador paralímpico da história.
Estamos falando de um super atleta, alguém que em pouco tempo se tornou um fenômeno e que termina um ciclo de quatro Paralimpíadas com 27 medalhas, 14 ouros, 7 pratas e 6 bronzes, o segundo mais medalhado da história da natação paralímpica. Se contabilizarmos as medalhas de Mundiais, são 40, 31 ouros, 7 pratas e 2 bronzes, e ainda tem as dos Jogos Para Pan Americanos 33 medalhas, todas douradas.
De onde vem tamanha qualidade para alguém que ganhou exatas 100 medalhas internacionais, 78 ouros, 14 pratas e 8 bronzes. Chegamos finalmente na eficiência de Daniel.
Ele é diferenciado. O esporte paralímpico é desafiador. Atletas nas diferentes modalidades buscam dentro da sua deficiência superar a dificuldade e se adaptar em busca da performance. E conseguem! Este processo adaptador é que faz o esporte paralímpico ficar interessante e atrativo.
Conto aqui que há alguns anos, recebi Daniel Dias em minha residência na Flórida. Na época, dirigia um Hummer 2, um carro alto e que muitas vezes os donos chegam a colocar pequenas barras como uma escada para facilitar a entrada. O meu não tinha nada. Daniel estava junto de seu treinador na época, Marcos Rojo Prado, estávamos saindo para jantar.
Abri a porta do Hummer e quando me preparo para ajudar ou pelo menos orientar a Daniel o quanto seria difícil para ele entrar a bordo, ele já estava sentado. “Dan…..”. O cara já estava lá!
A surpresa e até o choque é grande, nós não temos a ideia do que seja lidar, e vencer, as dificuldades das deficiências, e não sabemos da grandiosidade desta adaptação. Naquele dia, inclusive, aprendi uma das poucas coisas que Daniel não consegue fazer só: cortar a carne! O resto ele domina!
A eficência de Daniel é ainda maior na piscina. Ali, vai além da adaptação. A natação é um esporte de magnitude física, mas com elementos técnicos muito refinados. Quando você nada, você contrai a musculatura na fase propulsiva e relaxa na recuperação. Quem já assistiu uma prova de Daniel deve ficar impressionado com o ritmo de suas pequenas braçadas (sem braço), uma frequência enorme e que consegue aplicar a força na hora e no momento certo.
Das coisas que mais me chama a atenção em Daniel são seus fundamentos. Sua saída, sua virada e até mesmo sua chegada, são incríveis. Ele faz o streamline como ninguém, consegue romper a superfície após um trabalho de golfinhada que ele pena muito em fazer, mas faz. Aliás, é neste quesito que ele leva desvantagem contra quase todos os seus adversários na classe S5. Quase todo mundo tem as duas pernas, saem na frente e fazem um submerso ainda melhor.
Com o ritmo alucinado de suas braçadas, Daniel vai tomar a ponta ou emparelhar já na metade da piscina. E na chegada consegue fazer uma projeção dos seus pequenos braços combinado com um rolamento de quadril, projeção de ombro e chegada perfeita sem tirar o rosto da água. É um primor!
Ainda precisamos falar do alinhamento de seu corpo. Com um lado mais pesado do que o outro, menos membros, o desnível seria algo a ser esperado. Nada disso, ele é perfeito. Mantém o corpo alto, alinhado com a água e o mantém até o final da prova. Aliás, que final!
Os resultados de Daniel nestes 15 anos de natação paralímpica são produtos de tudo isso. De uma sensibilidade apurada, de uma adaptação descomunal, a eficiência de Daniel é fora do comum.
É lógico que no desenvolvimento e aprimoramento de todas estas qualidades teve a participação dos treinadores. Todos determinantes no sucesso de sua carreira. Marcos Prado, Leonardo Tomasello e Igor Russi, são artífices desta obra.
Quando terminou sua última prova em Tóquio, Daniel deu entrevista ao repórter Renato Peters do SporTV e, sem conseguir falar muito, bastante emocionado, resumiu um “acabou”. Na verdade, nada acabou. O legado de Daniel Dias é muito maior do que o fim deste ciclo na piscina.
Daniel Dias será eterno! Não só a natação paralímpica, os Jogos Paralímpicos, ou o esporte adaptado, mas nós, seus compatriotas e companheiros deste esporte seremos eternamente gratos.
Sua capacidade de ganhar medalhas agora ganha nova dimensão. Ele vai seguir presente, ídolo, referência e impactando vidas neste mundo maravilhoso que é o esporte e o movimento paralímpico. Por sinal, entre tantas qualidades e atributos físicos, Daniel tem uma característica que é inigualável: sua alegria!
Esta foi identificada lá trás, naquele garoto sapeca que pulava entre os amigos todos “normais”, como também desde as primeiras braçadas, as primeiras convocações para a Seleção Brasileira. Pode até ter gente que aponte outro nadador como o melhor da história na natação paralímpica, mas um mais alegre do que Daniel, jamais.
Ele mesmo disse isso lá trás, quando reconheceu que foi vítima de bullying na infância, superou e sempre mencionou “eu escolhi ser feliz”.
Não tem ninguém mais eficiente do que você para isso…
Curta sua aposentadoria Daniel, faça a alegria de Dona Raquel, da Asaph, de Danielzinho e de Hadassa, volte logo para casa, pois é só o que eles querem e falam.
Por Alex Pussieldi, editor chefe Best Swimming.
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