Editorial – Quer entender todo o caso Kamila Valieva?

Doping é o maior inimigo do esporte olímpico, isso é incontestável, e estamos, todos que fazemos parte deste meio, envolvidos no combate a esta mal prática e em defesa do esporte olímpico. Porém, não pense que existe um envolvimento e interesses políticos em tudo isso. Também, nem sempre, dá para confiar na mídia internacional, sempre muito intensa nos casos de atletas russos e chineses (e as vezes até os brasileiros), mas fazem vista grossa ao doping na Grã-Bretanha, Estados Unidos, Austrália, entre outros.

Quem lembra do caso Shayna Jack? A nadadora australiana ganhou uma cobertura mais do que positiva em seu caso de teste positivo na amostra A e B de Ligandrol, um dos SARMs, das drogas mais avançadas e mais populares entre os levantadores de peso da atualidade. A imprensa australiana (e internacional) chegou a contestar o processo de controle alegando até fraude processual.

A bola da vez é a patinadora russa Kamila Valieva a qual, por incrível que pareça, está longe de ser encerrada. A autorização para seguir competindo nos Jogos Olímpicos, seguir vencendo suas provas e impedindo outras patinadoras de subir ao pódio criou uma das maiores controvérsias do movimento olímpico.

Assim, a intenção aqui é detalhar em dados e fatos elementos para compreender melhor todo processo. Não será um editorial de opinião, até porque, toda e qualquer opinião neste momento é precipitada e comprometida, pois ninguém tem todos os elementos para uma conclusão adequada, algo que vai acontecer nos próximos meses, pois o caso está longe de terminar.

QUEM É KAMILA VALIEVA
Kamila Valieva nasceu 26 de abril de 2006, em Kazan, na República do Tatartstão, tem 1,60 de altura e mora e treina em Moscou onde faz parte do Sambo 70, seu clube de patinação. Começou a patinar com apenas três anos de idade, Desde 2018 é treinada por Eteri Turberidze se mudando para Moscou. No ano seguinte, ela era campeã do Junior Grand Prix em Turim, em 2020 campeã mundial júnior. Este ano, antes da Olimpíada foi campeã europeia.

O DOPING
Teste em competição, realizado em São Petersburgo, dia 25 de dezembro do ano passado, Campeonato Nacional de Patinação. O teste foi determinado pela própria Federação Russa de Patinação. Durante o evento, onde ela foi campeã, sua amostra foi coletada pela ITA, agência independente internacional de dopagem. Como o laboratório da RUSADA em Moscou segue suspenso pela WADA, as análises foram feitas no laboratório de Estocolmo, na Suécia.

O RESULTADO POSITIVO
No dia 8 de fevereiro, 51 dias depois da amostra ter sido recolhida, o Laboratório do Hospital Karolinska University em Estocolmo comunicou a Federação Russa de Patinação o teste positivo de Kamila Valieva com a presença da substância proibida Trimetazidina. A demora na identificação e comunicação do teste positivo foi alegadamente por conta da Pandemia, especificamente pelo aumento do número de casos na Suécia, o que teria retardado todo processo.

O PAINEL DE DOPING
No mesmo dia do recebimento do informe do laboratório, a RUSADA determinou a suspensão provisional (retirada de competições e treinamentos até o julgamento final). No dia seguinte, um Painel de Doping foi instalado e com a presença da defesa da atleta onde foram apresentados elementos, que ainda são desconhecidos, ficou determinada a revogação da determinação da RUSADA. O único argumento divulgado ao público é que, por ser menor de 16 anos, Kamila Valieva é considerada “Pessoa protegida” e não sujeita a qualquer punição por doping conforme determina o Código da WADA.

A REAÇÃO DO ITA E COI
Imediatamente após o conhecimento do caso, a Agência Independente ITA e o COI reagiram contestando a revogação da suspensão provisional e levaram o caso para o CAS/TAS. Até a avaliação do CAS/TAS, ela ficaria impedida de treinar ou competir.

CAS/TAS
Após a divulgação pela imprensa internacional, o Tribunal Extraordinário do CAS/TAS que mantém um escritório em Beijing se reuniu no dia 14 de fevereiro (um dia antes da segunda prova de Kamila) para analisar o caso. Com um tribunal formado por três pessoas, o italiano Fabio Iudica da Itália, que atuou como Presidente, Jeffrey Benz dos Estados Unidos e Vesna Bergant Rakocevic (que é médico) da Eslovênia, decidiram por unanimidade a manutenção da presença de Kamila Valieva nos Jogos Olímpicos de Inverno, rejeitando o pedido de suspensão provisional solicitado pelo COI e ITA. Não houve qualquer análise do caso de doping e bem como as pessoas envolvidas no processo, apenas a determinação que Kamila Valieva é “Pessoa protegida” pelo Código e a demora na divulgação dos resultados impediu um tempo de defesa adequado para a atleta.

REPERCUSSÃO DA DECISÃO
Muito criticada pela imprensa internacional, inclusive com uma nota de protesto da WADA, a decisão do CAS/TAS foi acatada pelo COI que garantiu a presença de Kamila Valieva para o restante dos Jogos Olímpicos de Inverno em Beijing. Como o processo de doping ainda segue para ser analisado, todas as premiações, tanto a por equipe já realizada, como a da prova individual, não serão realizadas durante a Olimpíada. As medalhas só serão entregues após o fim deste processo.

QUEM SUSPENDEU A RÚSSIA?
A Rússia está competindo em Beijing, como competiu na Oliimpíada de Tóquio, representando o Comitê Olímpico da Rússia, sem direito ao uso do nome, cores da bandeira, bandeira e hino nacional, por irregularidades apontadas pela WADA no laboratório da RUSADA em Moscou. A suspensão são de 2 anos e termina em 16 de dezembro de 2022 imposta pelo CAS/TAS.

POR QUE A RÚSSIA PODE DISPUTAR A OLIMPÍADA?
A própria decisão do CAS/TAS em 17 de dezembro de 2020 previa a presença de atletas representantes da Rússia competindo pelo Comitê, coisa que vai acontecer na Paralimpíada de Inverno, assim como atletas russos podem disputar os Campeonatos Mundiais pelas respectivas federações nacionais de esporte do país, mas não pelo país Rússia.

POR QUE O COI NÃO PROÍBE POR COMPLETO A PRESENÇA DA RÚSSIA?
Todo o sistema está conectado em responsabilidades e direitos. A WADA, inclusive, pediu uma suspensão ainda maior, o caso que foi julgado pelo CAS/TAS em dezembro de 2020 escutou mais de 50 testemunhas e o COI é obrigado a seguir as determinações da Corte Suprema do Esporte. Vale sempre lembrar que o CAS/TAS está localizado na Suiça, mesmo país sede do COI, e devidamente reconhecido pela Corte Suprema Federal da Suiça.

A SUBSTÂNCIA
Trimetazidina é uma substância proibida que faz parte da lista da WADA desde 1o de janeiro de 2014. O remédio também conhecido como TMZ é recomendado no tratamento de insuficiência cardíaca de causa isquêmica e da cardiopatia. A doença é causada por deficiência na circulação snaguínea nas artérias. A substância facilita o fluxo em tratamentos de longo prazo. Mesmo fazendo parte da lista da WADA desde 2014, não há comprovação de benefícios de performance da substância. Aliás, cada vez mais experts pedem a retirada da mesma da lista. O efeito da TMZ talvez pudesse ter algum tipo de benefício em provas de longa duração, mas jamais numa apresentação de quatro minutos que é o tempo de duração da prova da patinação artística. Nem mesmo em treinamentos tal tipo de benefício é comprovado cientificamente. O tratamento de TMZ também não é recomendado para pessoas com menos de 18 anos de idade.

O JULGAMENTO DO DOPING
Isso ainda está por vir. A análise do CAS/TAS foi somente para o direito de participação de Kamila Valieva nos Jogos Olímpicos de Beijing, mas ainda haverá a discussão do processo de dopagem da patinadora especiamente das pessoas envolvidas na sua preparacão. Denis Oswald, um dos integrantes do Comitê Executivo do COI, informou que no julgamento do caso pelo Painel de Doping foi apresentado o argumento de defesa de que a patinadora teria sido contaminada por uma medicação que seu avô estaria tomando. Tal argumetno foi apresentado por Alsu Valieva, a mãe de Kamila que participou do Painel como testemunha de defesa da filha. Ainda não se tem completo acesso a estas informações o que prejudica qualquer tipo de análise. O site russo Dossier Centre indica que a quantidade da substância encontrada no teste foi mínima, o que reforçaria o conceito de contaminação apresentado pela defesa da atleta.

OUTROS ATLETAS COM A MESMA SUBSTÂNCIA
Sun Yang testou positivo para TMZ em abril de 2014 e foi suspenso por três meses. Na época, a defesa do nadador chinês indicou que ele tomava a medicação de forma regular porém não havia sido informado de que o remédio fazia parte da lista de substâncias proibidas pela WADA quatro meses antes do teste. O nadador chinês foi suspenso por três meses e seu médico, Ba Zhen, considerado responsável levou uma suspensão de 14 meses. Caso Sun Yang tivesse apresentado o formulário de TUE, Therapeutic Use Exemption, ele não sofreria qualquer tipo de punição. Como se trata de direito de privacidade médica, não se sabe se Sun Yang ainda segue utilizando a medicação, o que seria legal se estivesse sob recomendação e prescrição médica.
A nadadora americana Madysin Cox testou positivo para TMZ em fevereiro de 2018. Inicialmente suspensa por quatro anos teve sua punição reduzida para dois anos e posteriormente para seis meses. A primeira redução foi por ter conseguido comprovar que foi de forma involuntária e a segunda por ter conseguido comprovar a contaminação de um suplemento utilizado.

QUEM PODE SER PUNIDO?
Kamila Valieva, por ser menor de 16 anos, não irá sofrer qualquer tipo de punição, suspensão, nem advertência. Somente pessoas que estejam envolvidos na preparação e responsabilidade pela atleta são passíveis de julgamento e punição. Isso inclui profissionais como a sua treinadora Eteri Turberidze, médico e até dirigentes da Seleção e do clube que ela pertence.

PRESIDENTE DA WADA PEDE BANIMENTO PARA SEMPRE
O polonês Witold Banka Presidente da WADA utilizou as redes sociais para protestar para um doping envolvendo uma criança deveria ter banimento para sempre dos profissionais e responsáveis envolvidos no processo. Informando que tal tipo de punição não está prevista no Código da WADA, ainda mais sendo na condição primária.

A LEI RODCHENKOV PODE SER APLICADA?
Sim, completado o processo de julgamento e punição (se houver) aos responsáveis, a lei americana Act Rodchenkov aprovada pelo Presidente Donald Trump em dezembro de 2020 pode ser imposta aos envolvidos. Jamais a atleta, considerada pelo código como “Pessoa protegida”, mas sim aos responsáveis, desde de que punidos e condenados. O Act Rodenchkov prevê multas e até 10 anos de prisão.

Alguns links importantes para serem pesquisados:

Decisão do CAS/TAS sobre o caso Kamila Valieva
https://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/CAS_Ad_Hoc_Media_Release_Beijing_8.pdf

Nota da WADA após a decisão do CAS/TAS
https://www.wada-ama.org/en/news/wada-statement-following-cas-decision-not-reinstate-skaters-provisional-suspension

Nota do COI determinando não realização das cerimônias de premiação para as provas de Kamila Valieva
https://olympics.com/ioc/news/ioc-eb-decides-no-medal-ceremonies-following-cas-decision-on-the-case-of-roc-skater

Nota da ITA após decisão do CAS/TAS
https://ita.sport/news/beijing-2022-ita-acknowledges-decision-of-cas-to-uphold-rusadas-decision-to-lift-provisional-suspension-of-figure-skaterkamila-valieva/
Decisão do CAS/TAS sobre a suspensão do Comitê Olímpico da Rússia
https://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/CAS_Media_Release_6689_decision.pdf

O QUE É:

COI – Comitê Olímpico Internacional, órgão regulador e organizador dos Jogos Olímpicos de Inverno e Verão.

CAS/TAS – Tribunal da Corte Suprema do Esporte, autoridade jurídica esportiva mundial.

ITA – International Testing Agency, agência internacional independente de dopagem contratada para realização dos testes em diversas federações e que fez o controle da amostra de Kamila Valieva.

RUSADA – Agência Russa de Controle Anti-Dopagem, mesmo seguindo suspensa e com o laboratório não autorizado para fazer controles, é responsável pela administração nacional dos atletas da Rússia. O órgão deveria ser independente do Governo Russo, porém, documentos e denúncias comprovadas indicam a participação e interferência política na gestão do órgão.

PAINEL DE DOPING – É a realização de um julgamento, que deve ser independente, envolvendo as partes envolvidas, no caso a atleta, seu médico, treinador ou responsável, podendo ser representados por advogados, dirigentes e médicos indicados pela RUSADA. A RUSADA, como todas as agências nacionais de controle de dopagem devem adotar as decisões dos Painéis de Doping que podem ou não serem admitidos pelas entidades maiores, no caso as federações internacionais, ou WADA, ou ITA. As contestações devem ser encaminhadas para julgamento do CAS/TAS.