Foi o meu antigo companheiro de borda de piscina, o grande treinador cubano-brasileiro Omar Gonzalez, que me ensinou isso. “Não existe ex-recordista mundial, ex-campeão olímpico ou ex-campeão mundial, são coisas tão grandes, tão importantes, tão relevantes, que jamais deixam de existir”. E ele tem razão.
Afinal, você até pode ter seu recorde quebrado, mas você nunca perderá o fato de ser recordista, ou mesmo sendo derrotado de algo que você já ganhou, mas a conquista de campeão é eternamente registrada.
Recordes foram feitos para serem quebrados. Você já deve ter escutado isso e a natação nos brinda com esta oportunidade. Recordes são registros históricos que mostram uma determinada performance que jamais foi alcançada. Isso é lindo, é sublime.
Uma das melhores e mais sensacionais criações das produções de transmissão de televisão na natação foi a criação da linha do recorde. O conceito e a ideia são fantásticos. Dão ao espectador a oportunidade de torcer ou sofrer para que uma marca seja quebrada.
Eu amo recordes, e como sou apaixonado por esporte estou sempre a torcer que eles sejam quebrados. A quebra de um recorde é sempre a celebração do esporte, de quem quebra e de todos que assistem. Recordes são sempre, sem exceção, celebrados com aplausos e vibrações em qualquer que seja o nível da competição. Até mesmo dos adversários.
Gostei demais de ver a reação de Cesar Cielo em mensagem direta a David Popovici por ocasião da quebra do seu recorde. Cielo foi honesto, relatou um sentimento diferente, e que mexe com seu interior. Lembro que anteriormente, o próprio Cielo revelou que sua maior conquista não foi a medalha olímpica, e sim o recorde, ou recordes mundiais. Eu jamais imaginaria isso, e acho que nunca havia escutado de outro nadador, mas faz todo sentido.
Ser o campeão é você ganhar ali, na hora, pontualmente. Ser o recordista mundial é o melhor da história, de todos os tempos, incontestável, e Cielo foi, ou melhor, Cielo é!
O Mundial de Roma de 2009 foi histórico, épico. Estava na cobertura daquele evento ao lado de Luiz Carlos Junior, Guilherme Roseguini e Mariana Brochado. O SporTV deu show na transmissão e o Mundial foi esplendoroso. Foram 43 recordes mundiais, algo jamais visto na história do nosso esporte.
E Cielo foi uma das estrelas daquela magnífica competição. Para ser sincero, Cielo virou o Imperador de Roma, Ave Cesar!
Logo no primeiro dia de competição, ele abriu o revezamento 4×100 livre do Brasil para um novo recorde de campeonato com 47.39. O Brasil passou com o primeiro tempo para a final e terminamos em quarto lugar com Cielo batendo novamente o recorde de campeonato, agora 47.09, apenas quatro centésimos acima do então recorde mundial de Eamon Sullivan.
Cielo estava bem, muito bem, e ainda teve três dias para descansar e se preparar para a prova dos 100 livre. No dia 29 de julho de 2009, Cielo nadou muito tranquilo as eliminatórias para 47.98 passar em oitavo lugar para a semifinal. Ali, no mesmo dia, nadou mais forte, 47.48 e entrava com o segundo tempo para a final do dia seguinte.
Na raia 5, ao lado do francês Alain Bernard que havia feito 47.22. O “dono” de um recorde que não existia, o 46.94 que ele nadou no Campeonato Francês e nunca foi reconhecido. O erro foi usar um traje da Arena que na época não estava permitido, mas agora era o traje que tanto ele como Cielo iriam nadar.
A final dos 100 livre foi a quarta prova daquele dia. O duelo era Cesar Cielo contra os franceses Bernard e Fred Bousquet. Bernard era melhor na volta, Bousquet melhor na ida. Cielo precisaria suplantar isso com uma estratégia arrojada e sustentar a volta. Passou em segundo, 22.17, apenas três centésimos atrás de Bousquet, mas conseguiu sustentar a volta com 24.74 e quebrar a barreira dos 47 segundos e se tornar no recordista mundial da prova: 46.91! Ave Cesar, que prova!
Os 100 livre é a prova clássica da natação mundial. É incontestável! A prova está no programa olímpico desde 1896, fez parte de todos os Mundiais, e sempre reuniu algumas das maiores estrelas deste esporte, com inúmeras histórias. Ser recordista mundial é espetacular, dos 100 livre masculino, é ainda melhor.
Os recordes mundiais foram oficialmente reconhecidos e organizados pela FINA a partir de 1957. Antes disso, os registros eram feitos e controlados diferentes entidades. O mais antigo recorde mundial dos 100 livre masculino pertenceu ao húngaro Zoltán Halmay com 1:05.8 feitos em 3 de dezembro de 1905.
Desde então, em 117 anos da prova, o recorde mundial foi quebrado 49 vezes, o tempo baixou 18 segundos e 94 centésimos, mas nunca havia ficado tanto tempo sem ser batido. Quem chega mais perto, e somente este, foi o recorde do Tarzan, Johnny Weissmuller e seus 57.4 ficaram 10 anos e um mês até ser quebrado por Peter Fick em 1934 com 56.8. A maioria dos intervalos entre os recordes mundiais está sempre entre um a dois anos, nunca mais do que isso.
No sábado, David Popovici e seus 46.86 de 100 livre quebraram o histórico recorde de Cesar Cielo que ficou intocável por 13 anos e 14 dias.
Atletas de alto rendimiento tem qualidades distintas, mesmo que nadem as mesmas provas. Popovici tem um perfil muito mais aeróbico do que o nado explosivo de Cesar Cielo. Mas também tem muitas coisas em comum. Uma delas é a sensibilidade.
Os melhores deste esporte conseguem ampliar esta sensibilidade para outra qualidade ainda mais apurada: a capacidade de reproduzir e verbalizar toda esta sensibilidade. Saber identificar o que sentiu, o que fez e o que não fez, são coisas que Cielo sempre fez bem, e Popovici vai na mesma linha.
Esta “verbalização” do sentimento, do movimento, é determinante para uma análise adequada de um treinador, de um orientador, e todos aqueles que estiverem envolvidos na busca da melhor performance.
Eu sempre disse que este esporte é “para gente inteligente”, e nunca tomei esta interpretação como minha, afinal Platão já dizia isso 300 anos Antes de Cristo. E Cielo era muito, Popovici não é diferente.
É incrível como um jovem garoto de 17 anos consegue se expressar tão bem, reconhecer a dimensão deste esporte, dos seus objetivos e sonhos. Escutar Popovici é tão bom quanto ver ele nadando.
Ninguém tem dúvida de que muita coisa ainda está por vir. Popovici está longe, muito longe do seu limite e outros recordes serão quebrados e tão celebrados como foi este 100 livre de Roma.
Aliás, nesta história toda, não poderia ter lugar melhor para que isso acontecesse. O público, a piscina, o ambiente, o novo Imperador da prova foi devidamente coroado com outra performance espetacular.
Cielo perdeu seu recorde, mas jamais perderá a majestade, será sempre apresentado e reconhecido como recordista mundial. E, enquanto isso, como o próprio Cielo desejou a Popovici, este seguirá suas conquistas e “vida longa ao novo rei”.
Por Alex Pussieldi, editor chefe Best Swimming.